sexta-feira, 24 de julho de 2009

As ditaduras podem voltar

Frei beto, hoje - correio braziliense - caderno opiniao.
As ditaduras podem voltar


Frei Betto
Escritor, é autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros






Todos os ditadores — de Hitler a Médici, de Batista a Stalin, de Franco a Somoza — passam à história como figuras execráveis, cujos nomes, estigmatizados, se associam às vítimas de seus governos tirânicos.

Aliás, Tirano era o comandante da guarda do rei Herodes. Seu nome tornou-se sinônimo de crueldade por se atribuir a ele a execução da ordem real de decapitar, em Belém, todos os bebês, entre os quais estaria Jesus se José e Maria não tivessem fugido com ele para o Egito.

A América Latina carrega em sua história longos períodos de supressão do regime democrático. No século 20, o Brasil conheceu dois: sob o governo Vargas (1937-1945) e sob o regime militar (1964-1985), sem falar dos que governaram sob Estado de Sítio.

O paradoxo é que todas as ditaduras latino-americanas foram suscitadas, patrocinadas, financiadas e armadas pelo governo dos EUA. Até o mandato de George W. Bush, para a Casa Branca, democracia consistia numa panaceia, mera retórica política. Fala-se que nos EUA nunca houve golpe de Estado porque não há, em Washington, embaixada americana.

O recente golpe em Honduras, que resultou na deposição do presidente Zelaya, democrática e constitucionalmente eleito, coloca o governo Obama frente à hora da verdade. Ao receber a notícia, Hillary Clinton, secretária de Estado, vacilou. Talvez tivesse manifestado apoio aos golpistas se o presidente Obama, em viagem à Rússia, não houvesse reagido em defesa de Zelaya como legítimo mandatário. Ainda assim, os EUA não suspenderam sua ajuda financeira e militar às Forças Armadas hondurenhas, que sustentam o ditador de plantão.

A política externa da Casa Branca trafega sobre o fio da navalha. Sabe que Zelaya está mais próximo de Chávez que dos falcões norte-mericanos que ainda comandam a CIA. Essa agência, especializada em terrorismo oficial, não foi devidamente saneada por Obama. E, agora, tenta justificar o golpe sob o pretexto, infundado, de que o presidente da Venezuela estaria prestes a remeter comandos militares a Honduras para derrubar os golpistas e devolver o mandato ao presidente Zelaya.

A América Latina conheceu significativos avanços políticos nas últimas duas décadas. Após destronar as ditaduras militares e rechaçar presidentes neoliberais — Collor no Brasil, Menem na Argentina, Fujimori no Peru, Caldera na Venezuela —, demonstra preferência eleitoral por candidatos oriundos de movimentos sociais, dispostos a disputar o espaço das esferas de poder com os tradicionais grupos oligárquicos.

É verdade que o uso do cachimbo entorta a boca. Alguns mandatários, em nome da governabilidade, não têm escrúpulos em fazer concessões a velhos caciques políticos notoriamente corruptos, representantes de feudos eleitorais marcados pela mais extrema pobreza.

Quando um líder político de origem progressista se deixa cooptar pela oligarquia conservadora, o que está em jogo, de fato, não é a propalada governabilidade. É a empregabilidade. Perder eleição significa o desemprego de milhares de correligionários que ocupam a máquina do Estado. Nesses tempos de crise financeira não é fácil inserir órfãos do Estado na iniciativa privada. Seria, para muitos, atroz sofrimento perder o cargo e, com ele, as mordomias, tanto materiais — transporte e viagens pagos pelo contribuinte — quanto simbólicas — a aura de autoridade que desencadeia em torno ondas concêntricas de bajulação.

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